Dei um soco no espelho do banheiro. Os cacos caíram dentro da pia e pedaços dos meus dedos também. Pedaços de vidro entraram nos meus dedos e passei a ter lâminas nas mãos. Facilitou o corte de tudo. Me ajudou a parar de roer as unhas, pois sempre deixava um talho no rosto. Passei a abrir embalagens com mais facilidades e durante as madrugadas, quando perdia o sono, amolava meus cacos deixando-os ainda mais pontiagudos. Dentro de um ônibus lotado, retalhei o pulso de uma mulher. Ela disse ter sido esfaqueada. Desci no ponto seguinte antes que percebessem minhas lâminas. Semana passada cumprimentei um amigo de infância, vinte anos sem vê-lo. Estávamos numa rua deserta, já era noite. Cortei seu pulso quando me despedi com um forte aperto de mão, ele olhou para aquilo e me agradeceu. Acho que queria mesmo cortar os pulsos, desviar o fluxo sangüíneo. Disse que sua vida não estava boa. Parei de cumprimentar as pessoas, parei de me coçar, de tomar banhos, de lavar as roupas, de roer as unhas. Só amolava os cacos de vidro e fatiava pedaços de bife. Comia e às vezes retalhava as roupas estendidas no varal do vizinho. Até que cansei de amolar-me solitário, amolar-me em pedaços bifes. Então comecei amolar-me em rostos delicados, em pernas torneadas, em corações descompassados. Faço isso todas as noites e meus cacos translúcidos, pontiagudos, isentos de imperfeições prendem-se ainda mais às minhas carnes. São meus pedaços petrificados, minha razão transparente e quebradiça. Sempre que passo, fatio um pedaço. E os restos eu lavo na pia do banheiro. Os meus e os seus. E os restos dos outros em pequenos pedaços grudados no vidro, eu posso distinguir. Distinguir meus restos e o dos outros, mesmo sendo a carne sempre vermelha.
*That´s all folks*
*That´s all folks*
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