sexta-feira, março 31, 2006

A mulher do sobradinho rosa

Ano passado me chamaram às pressas para visitar uma amiga. Quer dizer, conheço essa moça há muitos anos, nos bicávamos às vezes, pois eu sempre dizia que ela era estranha. Dizia às nossas amigas em comum. E sair na balada, quase sempre ela estava junto. Nunca discutimos, mas eu tinha aquela cisma com a mulher. Ela é 7 anos mais velha do que eu. Então quando eu tinha 14, ela já tinha 21 anos. E foi quando a conheci. Ok, tudo bem. Sempre andei com gente mais velha mesmo. Os anos se passaram, mas minha cisma com ela não; nunca mesmo. Que cisma? Sei lá, meu, era uma coisa estranha. Eu sentia que ela invejava as pessoas, sugava os outros, um tipo que vive de olho comprido no seu guarda-roupas. Todos os “carinhas” davam mole pra ela, era o que dizia, mas eu via o oposto, ela chacoalhando a cabeça de um lado para o outro, largando suas madeixas como um rastro encantado. Todos sabiam que a gente se bicava, não se gostava.

Ana Paula deixa de ser implicante, ela é legal _ me diziam. Gente, ela é estranha, esquisita _ eu insistia.

Anos se passaram e recebo um certo telefonema, de uma amiga em comum. Dessa eu gosto muito, tanto que aturava a outra. Ela me pediu para fazer uma visita à nossa estranha colega me dizendo assim: Ana Paula, ela tá tão estranha, umas coisas esquisitas, só vendo. Vai até lá e me diga o que acha.

Pensei, putz, que merda, como negar, já que ela é minha amiga. A mãe dela também me pediu e pensei que raios de estranheza é essa. Eu sempre a achei estranha, mas a coisa havia extrapolado, o caldo quente entornado no pé de alguém, e então lá vou eu... me sentindo um caça-fantasmas, já que a abordagem era de cunho sobrenatural.

Ela me atende, sorrateira, colocando somente a cabeça pra fora da porta. Eu entro na casa. Um sobrado bem pequeno. Ela fecha a porta e vamos pra sala. Começamos a conversar e aí que a coisa foi estranha pra valer. Meu faro é foda. Sabia que aquela mina era estranha, mas a coisa se tornou uma absurda obsessão.

Ela me disse que todas as vezes em que entrava num ônibus, tinha a absoluta certeza de que todos os passageiros a conheciam, porém ela não conhecia nenhum deles. Quando andava na rua, sabia que era vigiada. Isso eu vi. Enquanto a gente conversava, ela se levantava de tempo em tempo e espiava da sacada “os outros.” Através do pequeno basculante da cozinha, ela esticava os olhos toda a hora.

Me confessou que tinha certeza de que seu telefone estava grampeado por vizinhos e que a água que bebia estava contaminada, pois o namorado de não me lembro quem, havia depositado alguma substância na caixa d´agua.

Deixou de comer comida de um certo supermercado, pois dizia que tudo ali era consagrada a demônios, assim, como deixou de usar roupas novas já que as lojas de roupas também consagravam suas peças a demônios. Só usava roupas velhas.

Estava emagrecendo e sua mãe colocava doses de calmante dissolvido na comida, sem que ela percebesse.
Disse-me que não podia dormir, porque criaturas das trevas queriam arrebatá-la. Não comia nem dormia. Deixou de falar ao telefone, deixou de sair de casa. Na esquina de sua casa, havia uma igreja pentecostal e afirmava que os crentes faziam macumba para ela. Uma coisa me chocou um pouco mais e era isso que a deixava mais obcecada no momento. Dizia que tinha certeza, sempre absoluta, de haver alguma coisa a seu respeito perambulando em sites da Internet. Que tinha sua privacidade violada e me confessou em tom muito baixo, quase um murmúrio, de que suspeitava estar sendo vigiada por câmeras dentro de sua própria casa. Eu juro que vi, ela lançava olhares pelos cantos das paredes. Não havia lugar seguro.

Teve uma certa hora, enquanto conversávamos, eu olhava muito para uma almofada colorida no canto do sofá, ao lado dela. Meus olhos precisavam de refúgio às vezes e então descansavam sobre ela. Ela me perguntou por que eu olhava tanto para aquele lado, se estava vendo alguma coisa, e insistiu nisso. Um horror, estava ficando petrificada. Juro, que coisa parecida só em filmes de terror. E filmes seqüenciados. Parte 1, 2 e 3.

Acreditava que haviam vultos na casa, mas o único vulto que vi, foi o dela. Um vulto doente. Perturbado até a alma. Saí de lá me sentindo mal. Fiquei quase três noites sem dormir direito e nunca mais voltei.

Liguei para minha amiga e ela foi logo dizendo: E aí?
E aí_ eu disse_ E aí é que ela está doente. Muito doente. Um tipo de transtorno obsessivo e ela acredita em tudo o que diz. Ela tem certeza de que é tudo verdade.

Essa foi a parte mais assustadora. Quando saí de lá, perdi minha razão por instantes. Ela acredita e te convence com a maior tranqüilidade do mundo. Você começa a se levar por ela, parece uma praga, que te contamina.

A mãe da minha amiga que tentou ajudá-la com conversas, foi parar no psiquiatra. Claro, ela é nociva. É horrível dizer isso, mas ela parece que carrega uma leva do mal dentro de si.
Sei que sempre foi amargurada, sempre odiou o pai, porque ele morreu assassinado durante um assalto quando era bem pequena. Culpava a morte do pai pela vida dura que levava com a mãe e a irmã. E o pior foi que ele reagiu ao assalto, justamente porque carregava todo o seu salário do mês que havia acabado de receber.

Acho que tanto ódio e rancor acumulado geraram um distúrbio, sei lá.

Ela mora num sobradinho rosa, de esquina, e sempre desvio dele ao passar próximo. Está se tornando uma história assombrada, tipo “A mulher do sobradinho rosa” que vê vultos, ouve vozes e principalmente tem a certeza absoluta de que há no mundo uma conspiração contra sua vida.


“Os defuntos antigos me importunam.... De tempos a tempos um vulto embuçado passava na calçada”.
[Angústia _ Graciliano Ramos]



*That´s all folks*

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