A semana foi bem corrida, mas agora começa a se ajeitar. Já deu até pra ler um livro e começar outro. Ainda me sinto sem identidade, porque preciso de comprovante de residência pra tudo a que quero me associar, por isso torço pra alguma conta chegar.
O trabalho vai indo bem, mas cada dia mais tenho esbarrado com a miséria humana. Essa miséria que escolhe qualquer um. Ando fazendo uma série de entrevistas com funcionários do Instituto Nacional do Câncer. Do diretor geral a paciente. Entrevistei um garoto de 16 anos que aos 14 descobriu que tinha apenas mais três meses de vida, assim de um dia para o outro. Foi o fundo do poço. Ele não sabia o que era leucemia. E a sua, fez uma destruição rápida em seu organismo. Mal tinha começado a ter aulas de biologia. Era só um garoto que desejava invadir o sol, sitiar a lua, tomar um porre, beijar a garota da turma ao lado.
Eu colhi esse depoimento com toda a família e foi punk. Cada dia que passava, ele estava mais próximo da morte e ninguém podia fazer nada, até que surgiu um cordão umbilical, isso mesmo, um cordão umbilical no exterior e venho uma pequena esperança. Mas o problema é que ele precisaria de dois cordões para fazer o procedimento, devido a uma particularidade da sua doença. Então surgiu o questionamento jurídico: Se uma pessoa precisa de dois cordões, nós podemos salvar duas pessoas, cada uma com um cordão. É foda. É isso mesmo. São estatísticas. Porém, ele conseguiu receber os dois cordões e fez o procedimento. Mas antes passou por umas sessões de radioterapia, além da quimioterapia que já tinha feito várias vezes. Demorou trinta e dois dias para saber se ele ficaria realmente bem. E ele ficou.
Ele é um garoto magrinho, com cara de boa gente e dá vontade de colocá-lo no colo. Não parece que passou por tudo isso e disse que quer esquecer tudo o que aconteceu. Ele fica emocionado e quase chora. E eu com meu gravadorzinho, não sei o que fazer. E enquanto ele falava, eu pensava nas idiotices que me aborrecem. A mim e a você. E para aquele garoto não existe gigante alto demais, pedra difícil de remover do caminho ou qualquer outra coisa que deixaria você e eu irritados.
Vi um velhinho quase sem nariz, com um curativo enorme no meu do rosto. Uma mulher que escarrava através de um buraco no pescoço, outro que falava por aquele aparelho em que a voz sai metalizada. Crianças deformadas por tumores no rosto e pescoço. Vi uma garotinha careca com cerca de cinco anos que tinha a cabeça toda retalhada, marcada por cicatrizes que iam de um lado ao outro. Um pouco acima da nuca, eram tantas cicatrizes, que tive a impressão de ver uma águia com as asas abertas.
Gente careca aos montes esperando doação de medula óssea; gente sem perna ou braço. Gente de máscara branca discutindo o jogo do Vasco. Gente gemendo de dor em pele e osso. Pacientes removidos em macas pelos corredores com o peito riscado à caneta feito porcos que serão retalhados. Esse tem sido o cenário da semana.
Gente careca aos montes esperando doação de medula óssea; gente sem perna ou braço. Gente de máscara branca discutindo o jogo do Vasco. Gente gemendo de dor em pele e osso. Pacientes removidos em macas pelos corredores com o peito riscado à caneta feito porcos que serão retalhados. Esse tem sido o cenário da semana.
Enfim, pra descontrair e mostrar que não sou assim tão fatídica, na verdade sou do tipo que gosta de rir até perder as forças, deixo aqui um trecho de um conto chamado "Nós, os excêntricos idiotas" que está publicado na antologia "25 mulheres quês estão fazendo a nova literatura brasileira".
"Relaxei novamente me embalando sábado a noite, que maravilha, é isso aí garota. E porque não? Tirei a porcaria dos óculos, comprimi os olhos para enxergar os vultos e isso me deixou com ar blazé e despojado. Pedi um coquetel de frutas cítricas para aparentar mais descontração. Haveria um desfile e fui me sentar num lugarzinho que permitia ver os modelos bem de frente, todos os detalhes. Não demorou e as galopadas das pernas compridas e lisinhas e cheias de óleo de amêndoa para acentuar as curvas suaves despontavam na passarela. Cada passada, equivalia a um ângulo de quase noventa graus. Pensava em geometria quando o segundo modelo entra na passarela. Olhos espremidos, olheiras, cabelos despenteados, pálido andando ritmado em minha direção. Pensei, só quero um segundo disso. Um segundo disso e estava bom. Aquilo tudo jamais se aproximaria de mim a não ser para pedir um favor ou informações. Vá sonhando, perna torta! Vá sonhando. Mas eu tinha Kafka e sabia a exata localização de Butão, no Centro-Sul da Ásia, cordilheira do Himalaia entre a China e a Índia, capital é Timfu, são budistas e falam Zoncá. Levantei a cabeça e orgulhava-me disso".
*That´s all folks*
*That´s all folks*
Nenhum comentário:
Postar um comentário