quinta-feira, março 23, 2006

O corte de Cortázar

Dia desses, assisti uma entrevista com Julio Cortázar, deveras antiga e com um entrevistador explicitamente fã e leitor incondicional “del cabron”. E ele se referia ao entrevistado em terceira pessoa e isso soava estranho. Ele fazia várias perguntas em uma e atrapalhava-se com um sorriso nervoso.

E é aí que entra a magnitude de Cortázar. Ele mostrava ao entrevistador sua pouca habilidade em direcionar as perguntas, provavelmente mais por nervosismo do que por incompetência, e de maneira muito elegante e calma respondia com uma simplicidade estonteante. Ele demonstra ter consciência de sua importância, mas demonstra de forma sutil, como um semi-deus no Olimpo. Apesar de não saber como se portam os semi-deuses do Olimpo, provavelmente muito menos gentis que Cortázar, porém é a única imagem que me veio agora. Bem, ele tem o poder de simplificar suas questões e a dos outros. Concisão também está lá.

E o curioso disso tudo é saber que ele era um escritor de complexidades, deixou um belo legado fantástico, universo esse, segundo ele, já era de sua propriedade nos tempos de menino. Contou uma breve passagem de sua infância, quando leu um livro de Julio Verne, tido como um de seus mestres (e foi aí que adorei, pois o Verne, tão deixado de lado nas referências literárias da maioria dos escritores, parecendo ser um autor “menor” é para mim também um mestre, principalmente em precisão. Quer aprender a contar uma história? Leia Verne, ele ensina em centenas de capítulos exuberantes ).

Bom, voltando ao outro Julio, o argentino, ele conta que esse livro já trazia de maneira inédita o “homem invisível”, que ele achou plausível, porém um coleguinha da escola lhe devolveu o livro afirmando ser fantástico demais. Cortazar, naquele instante entendeu que o significado de fantástico para ele perpassava outras instâncias, bem diferentes das dos outros, e provavelmente ali começou uma real formação do irreal para o escritor.

Contou também que as várias leituras de sua obra, o surpreendia por serem interpretações tão distintas do real. Seu conto “A casa Tomada”, um dos mais conhecidos, foi sonhado. Ele teve um pesadelo em que se encontrava dentro de sua casa e uma força misteriosa que manifestava-se através de ruídos o aterrorizava. Ele tentava impedir aquela coisa com barricadas que ia suspendendo ao longo do sonho e em momento algum ele conseguiu detectar que coisa era aquela, até que a última porta que ele fecha é a porta da rua. Ele foi expulso de sua própria casa e sem saber pelo o quê.

Esse conto foi interpretado como reflexo da situação política da Argentina na época e teve sempre essa leitura, que para ele é um equívoco, porém aceita as múltiplas interpretações de sua obra.

Mas compreender a magnitude de um verdadeiro escritor, é quando ele serenamente reconhece suas fraquezas, ao dizer que não é um homem das idéias, que não saberia expressar sua opinião através de um ensaio de dez páginas. Ele conta melhor em conto, em prosa, em ficção e alegoria. E ao longo da entrevista, eu não queria deixar de escutá-lo, pois parece ser um homem realmente envolvido com seu ofício, dando de ombros para o resto. Fama, sucesso, dinheiro. Parece-lhe importar somente as letras, a dimensão do irreal e seu cigarrinho que ele nunca largava.

Disse que demorou bastante antes de publicar qualquer coisa. Que experimentou, agora será uma especulação pessoal, o estado bruto do ser humano, suas experiências e leituras, acho que ele propôs a construir e delimitar um espaço de raciocínio e entender-se em meio ao emaranhado de idéias e traduzi-las no papel, já que esse, acredito ser a principal tarefa quando se escreve. Decodificar nossas leis de raciocínio, nossas vertentes de construções imaginárias. Antes de pensarmos em palavras, em elegância de estilo, figuras de linguagem, texto literário, obra e vaidades de aquisições de títulos e prêmios, acredito no poder das idéias decodificadas e são elas, não as palavras que considero serem a materialização desse raciocínio, que têm o poder de transformar o homem.

A tal revolução pessoal, o verme que corrói os bolos de ignorância e mediocridade, que desata alguns nós, que podem direcionar o olhar para além do arco-íris, mas sabendo que no fim de um não há potes de ouro. Acho que decifrar certos textos é como ver uma esfinge lançando-se no abismo. É nisso que acredito consistir toda a forma de arte.

Acho melhor parar por aqui, pois está ficando com cara de ensaio. E eu só queria especular sobre o fantástico escritor Cortázar, que é afiado até no nome.



*That´s all folks*