sexta-feira, agosto 04, 2006

... perto do limite extremo, às vésperas de uma catástrofe.

Assisti ao filme Estamira. Te arranca umas risadas. Poucas risadas. E elas são tensas na maioria das vezes. Chega uma hora que nada mais te faz rir. Nada mais. E é aí que você percebe que aquilo é mesmo de verdade. Estamira. A beira do mundo, como ela se anuncia. “Sou Estamira, a beira do mundo”.

Ela é a borda, a margem, a orla, está perto do limite extremo, às vésperas de uma catástrofe. É isso que o dicionário diz sobre a palavra beira. E sem saber, isto também define a protagonista do documentário de Marcos Prado, que é uma senhora que sofre de problemas mentais, esquizofrenia, e é terrivelmente convincente em muitos momentos.

Faz tempo escrevi aqui no blog um post chamado “A mulher do sobradinho rosa” em que contava a história de uma amiga de adolescência que começou a despertar a síndrome de esquizofrenia. Vou deixar o link para o post no final deste.

A dona Estamira do documentário chega a ser fascinante. Ela fala de uma ordem superior, os chama por seus nomes, nos faz acreditar que vivemos espreitados e espiados por quem quer que seja. Odeia a Deus. Odeia a Jesus. Disse que ainda que a cortem em pedacinhos, ela ainda assim continuaria negando a Deus.

“Sou ruim, mas não sou perversa”, admite Estamira algumas vezes. Vive bem entre o lixo, urubus, pestes, ratos, e outros como ela que são e estão tão à beira. À beira da lucidez, da sociedade, do status quo, da dignidade, da assistência, da caridade. E ainda assim nos parece que somos nós que entendemos tudo errado. Olhamos e não vemos. Está bem na nossa cara e a gente não consegue distinguir nada.

Ela teve uma vida marcada por desgraças. A mãe morreu louca. Ela foi obrigada a trabalhar na zona ainda bem menina. Se casou aos 17 anos com um homem que a tirou da zona. Ela era apenas mais uma para ele. Se casou novamente e só foi humilhada. Era muito religiosa. Era muito apaixonada pelo segundo marido que a abandonou com uma filha. Já tinha outro guri, do primeiro casamento. Foi violentada duas vezes na rua. Começou a enlouquecer aos poucos. E assim foi sua vida. Começou a desistir de tudo. Encontrou o lixão. E é nele que ela começou a refazer sua vida. Faz vinte anos que ele é seu primeiro lar, o segundo é um barraco que tem em Campo Grande, Rio de Janeiro. ( bom, acho que é Campo Grande mesmo.)

Tudo vêm do lixão. Não há recuperação para ela, assim como não há recuperação para a maioria de nós, que estamos lúcidos? A minha realidade é a minha verdade. Estamira tem a sua e vive com ela. Indigna-se, contesta. Ela sabe. Ela conhece. Ela é Buda, Jesus Cristo... se considera a voz da revelação, é um apocalipse de carne e osso.

Parece uma daquelas bruxas medievais. Principalmente sob aquela bela fotografia do documentário. Vê-la esbravejar contra os céus, parece que roga por nós, que nos
espragueja, que nos condena. E se você quer saber de quem é a culpa disso tudo... ela responde:

“A culpa é do hipócrita, mentiroso, esperto ao contrário que joga a pedra e esconde a mão”.


E nas linhas do livro de Kazantzakis encontro algo assim... muito perto, à beira do que Estamira parece sentir todo o tempo.


“Toda a alegria da noite passada refluía do meu íntimo, ramificava-se, regando abundantemente a terra de que sou feito. Assim deitado, de olhos fechados, parecia-me ouvir quebrar-se e alargar-se o meu ser. Nessa noite, pela primeira vez eu sentia, nitidamente que também a alma é carne, talvez mais instável, mais diáfana, mais livre, porém carne. E que a carne é alma, um pouco sonolenta, fatigada por longas caminhadas, sobrecarregada de pesadas heranças”.

[trecho do livro “Zorba o grego” _ nikos kazantzakis]



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Clique abaixo para ler o post A mulher do sobradinho rosa.

http://killing-travis.blogspot.com/2006_03_26_killing-travis_archive.html


*That´s all folks*


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