quarta-feira, setembro 06, 2006

99 passos

É isso que me separa do crime de semana passada. 99 passos. Eu contei duas vezes. Indo e vindo. Paro do outro lado da rua e fico a encarar o sobradinho. O rapaz que matou e esquartejou uma mulher. Primeiro a sangrou e depois cortou em pedaços. Encontraram apenas as pernas e seus documentos dentro de um saco de lixo numa rua há centenas de passos daqui. O restante foi para o lixo. 99 passos que transcorro quase diariamente. Indo e vindo.

No jornal os moradores reclamam da falta de policiamento no bairro. E o que isso tem a ver com policiamento? Isso tem a ver com miséria. No salão, algumas mulheres riam com o caso. Riam mesmo. Mulheres como a que morreu. Como eu. As filhas da puta faziam as unhas. Eu fazia as unhas e queria vomitar. Não é falta de policiamento, é miséria humana. Elas são miseráveis porque riem, o sujeito porque matou e eu por ouvir e não fazer nada.

99 passos. Faz dois dias que conto indo e vindo e fico encarando o sobradinho. Acho que quero ver um fantasma, ouvir um eco abafado. Espero ver alguém na janela. Não há nada lá. Retalharam qualquer espécie de eco. E tudo por aqui parece um blues. Frases repetidas sem refrão. Isso é um blues. Isso pode ser também a vida da maioria das pessoas. Frases repetidas sem refrão. Não sei quantos compassos ou passos é preciso para se deparar com tanta miséria.

Acabei de assistir ao “Dama na Água”. Muitas críticas negativas foram feitas ao filme. Lá não existe miséria. Existe esperança, poesia e delicadeza. E as mesmas filhas da puta do salão provavelmente não iriam gostar dele também. São essas mesmas filhas da puta; mães, filhas, esposas, que te rodeiam. Não se pode esperar nada de lugar nenhum, digo lugar real, quando as vítimas zombam das vítimas. Quando riam por terem encontrado apenas alguns restos mortais. “E o resto?” Uma perguntou. “Sei lá... foi pro lixo”, a outra respondeu.

Nem restos de sardinha em lata eu trato com tanto desprezo. Uma filha da puta dessas te arranca um bife de propósito. Uma filha da puta dessas te faz reconhecer o cheiro de miséria a muitos passos. Bem mais do que os 99.



*That´s all folks*

10 comentários:

Anônimo disse...

embora seja homem e só use o cortador de unha, depois q assisti repulsa ao sexo, eu jamais deixaria uma mulher cuidar das minhas unhas.

fred.

Anônimo disse...

O cinema mais perto da minha casa fica a bem mais do que 99 passos (talvez por isso ainda não tenha assistido ao filme A Dama na Água). Mas pretendo vê-lo. Mesmo criticando a obra cinematográfica do Shyamalan, sempre, no final, vou ver seus filmes. É aquela velha curiosidade mórbida que me devora. Abraços do crítico da caverna cinematográfica. P.S: Sabia que o seu post lembra um pouco do sofrimento e do asco criado por William Friedkin em Viver e Morrer em Los Angeles?

Henrique Araújo disse...

acho que esses comentários também ilustram a miséria de que falou a Ana Paula. E muito bem.

Outra coisa: se tu tiver alguma foto do sobrado, não esquece de me mandar, por favor!

Abraços e cuidado, menina.

ana paula maia disse...

*Fred, aquela é uma cena que nenhuma mulher deveria assistir. Eu cutilo as unhas. É medonho.


*Pois é Roberto, o Shyamalan causa efeito parecido em mim. Ele é um contador de histórias de ninar mesmo. Depois de assisti-lo, tenho uma sensação de paz. É estranho.


*Henrique, rapaz, não tenho câmera, mas sabe que estou querendo mesmo tirar uma foto de lá. Se conseguir, eu coloco aqui no blog.


that´s all folks!

Anônimo disse...

venho aqui há algum tempo desde que li uma matéria na revista da mtv indicando este blog, mas nunca tive coragem de comentar. bem, isso deve soar engraçado para você, mas se um dia eu me aventurar a escrever quero me aventurar à sua maneira. não, na verdade, à minha, só espero que ela seja tão boa quanto a sua : )

e sobre o post, uma mulher se jogou da janela de sua casa na minha rua há uns dois meses. na semana passada eu fui cortar o cabelo e ouvi uma manicure comentando assim mesmo sobre o caso "essa gente anda vendo filme demais,tá achando até que pode voar". hahaha, ok.

ana paula maia disse...

Oi Fabianna! Primeiro, muito obrigada e segundo, acho que passar a vida cutilando as unhas dos outros traz à tona uma severa dose de crueldade.

bjs

Simone disse...

Por detalhes da reportagem, percebi que a filha da mulher foi colega de turma minha. Eu fui a festa de 15 anos da filha. Conheci ela, só não lembro bem.
Sei que conheço algumas pessoas ricas que têm prazer em poder humilhar quem os serve ou quem está abaixo. Diariamente. Impunemente. É muita confiança na injustiça; um dia encontram um pobre que ficou doido de tanto sapo que já engoliu...

ana paula maia disse...

Pois é, Simone. Muitos esquecem que muitos não precisam de um motivo, digamos assim, RELEVANTE para por um fim na vida de outros.

Anônimo disse...

Caí aqui via link do seu perfil no orkut. Uma bela surpresa. Beijo.

Anônimo disse...

Nossa, adorei ana! Belo título, e particularmente adoro historias ligadas a numeros. Listas também eu gosto.Tipo "alta fidelidade" ou "afogando em numeros". Bem, mas o que importa é que adorei o que você escreve! Vou fuçar mais! 99 congratulações.